Comunidades quilombolas do nordeste do Pará estão vivendo uma nova realidade graças a parceria entre ciência e tradição. Um projeto inédito da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) permite que a produção artesanal de farinhas à base de cará, araruta, banana e outros ingredientes típicos da sociobiodiversidade amazônica ganhe potencial de escala e qualidade agroindustrial, o que abre a possibilidade de novas formas de comercialização e geração de renda sem prejuízo ao meio ambiente.
O Projeto Quirera, primeira iniciativa de inovação social da Embrapa no Pará, desenvolvida em parceria com a Rede Bragantina de Saberes e Sabores, reúne agricultores, associações e cooperativas em mais de dez municípios da região Bragantina para trabalharem com base nos saberes tradicionais.
Na semana em que se celebra o Dia da Amazônia, em 5 de setembro, o projeto mostra que “é possível produzir com tecnologia, sem desmatar, respeitando o tempo das pessoas e da natureza”, como disse Nazaré Reis, assessora técnica da Rede Bragantina,
O pesquisador da Embrapa Agrobiologia (RJ) Mauro Pinto acompanha de perto os projetos em todo o Brasil e frisa que a parceria com organizações sociais é essencial para atender às especificidades territoriais e gerar impactos positivos vencendo barreiras de longa data, como o acesso à tecnologia dessas comunidades:.
“A Embrapa estimula e vem fortalecendo ações que privilegiam a utilização de abordagens de construção coletiva de conhecimentos e tecnologias como estratégia para fortalecer os processos de inovação nos territórios, no intuito de gerar valor e impactos positivos às comunidades envolvidas e a toda a sociedade”, declara.
Saberes locais
No projeto, os saberes locais são guias para orientar o desenvolvimento técnico, aliando processos de escuta, respeito e construção coletiva. A junção de saberes resulta em melhora de aproveitamento em toda a escala produtiva, principalmente nas agroindústrias comunitárias: onde antes se produzia dez quilos de farinha por semana com altas perdas e trabalho pesado, hoje são processados até 40 quilos com alto padrão de higiene, qualidade nutricional e conservação.
As farinhas sem glúten a base de cará branco, cará roxo, araruta, banana, pupunha e tucumã, itens que auxiliam a nutrição das comunidades locais há décadas, retomam o protagonismo em nova roupagem: alcançando um nicho diferenciado de consumo e destacando seu potencial nutritivo se comparado aos similares encontrados no mercado. Isso sem falar na versatilidade, que permite uso diverso em setores alimentares como panificação, produção de shakes e outros itens que a criatividade gastronômica permitir, sendo uma opção importante para pessoas com restrições alimentares ou que busca opções mais saudáveis há alguns ingredientes do dia a dia.
A Rede Bragantina de Saberes e Sabores, criada no fim dos anos 2000, possui importância fundamental nesta nova história vivida pelas comunidades: as matérias-primas que comumente se perdiam nos períodos de safra ou não se cultivavam mais nas áreas de plantio voltaram a aparecer em feiras e eventos na capital paraense e despertar curiosidade em parte do mercado.
Salto de qualidade
Anos depois, o salto de qualidade chegou por meio da parceria e inovação social, que resultaram em adequações tecnológicas e boas práticas em toda a cadeia produtiva. Antes, a secagem era feita ao sol e os equipamentos eram rudimentares exigindo esforço físico extremo. Durante o inverno amazônico, período mais chuvoso (ocorrido entre os meses de dezembro a maio), as perdas se acumulavam e a produção parava. Agora, o projeto trouxe secadores elétricos adaptados e treinamentos em boas práticas para reduzir as perdas pela metade.
Além disso, equipamentos e peças de reposição de baixo custo, fáceis de manter e encontrar, como ventiladores, carrinhos de padaria e resistências de fritadeira elétrica, tiveram o uso adaptado para tornar as ferramentas agroindustriais ainda mais eficientes. Como resultado, a produção quadruplicou e a qualidade aumentou gerando farinhas de maior durabilidade, respeitando a legislação vigente.
Leiane Nascimento, liderança da agroindústria Atavida, uma das beneficiadas pelo projeto, relembra as dificuldades enfrentadas: “Antes, secar a matéria-prima era um problema, principalmente no inverno. Agora, com os equipamentos, conseguimos manter a produção com menos desperdício”. A agroindústria que Leiane faz parte produz farinhas de banana, cará branco, cará roxo, araruta, pupunha e tucumã, todas sem glúten e com alto valor nutricional reconhecido cientificamente.
O sucesso do Projeto Quirera na região Bragantina agora inspira a Embrapa a expandir a iniciativa para outras regiões do Pará e do Brasil. Laura Abreu, pesquisadora da Embrapa Amazônia Oriental (PA) e coordenadora do projeto, celebra as conquistas da iniciativa.
“Nosso sonho é que pequenas agroindústrias se multipliquem, levando dignidade, saúde e floresta em pé por toda a Amazônia”, diz.
Nazaré Reis diz que a mensagem final do projeto é ainda mais especial, por resgata alimentos ameaçados de desaparecer dos sistemas produtivos, como o cará e a araruta, fortalecendo a sociobiodiversidade amazônica e a segurança alimentar das comunidades.
“Se antes pensavam em desmatar, agora plantam e entendem que preservar garante renda e alimentação”.
Ela destaca ainda a importância do projeto para as comunidades e para o meio ambiente.
“As mulheres voltaram a produzir, os jovens se interessaram de novo pelo campo, e a farinha que antes era só para casa agora tem valor de mercado”, celebra